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Vamos falar sobre um louco?

Segunda-feira, 25.03.24

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“Maldito”, marginalizado e incompreendido enquanto viveu, encarnação máxima do gênio romântico, da imagem do artista iluminado e louco, Artaud passou a ser reconhecido depois da sua morte um dos mais mercantes e inovadores criadores do nosso século. Tudo o que, aos olhos dos seus contemporâneos pareceu mero delírio e sintoma de loucura, agora é referência obrigatória para as mais avançadas correntes de pensamento crítico e criação artística nas suas várias manifestações: teatro, arte de vanguarda e criações experimentais, manifestações coletivas e espontâneas, poesia, lingüística e semiologia, psicanálise e antipsiquiatria, cultura e contracultura.
Antonin Marie-Joseph Artaud nasceu em Marselha a 4 de setembro de 1896.

Desde criança, Artaud teve sérios problemas de saúde, inclusive neurológicos. Consta que sofreu de meningite aos cinco anos. Teve convulsões na adolescência e seu primeiro internamento em sanatório ocorreu aos 19 anos, passando por sucessivos tratamentos e pelas mãos de vários psiquiatras e psicanalistas enquanto viveu. Aos 24 anos, começa a tomar láudano, uma tintura de ópio, para aliviar suas dores de cabeça, tomando-se dependente.

Qual o ar de Artaud?

Artaud, magro, tenso. Rosto enxuto com olhos visionários. Um jeito sardónico. Ora deprimido, ora vibrante e malicioso. Para ele, o teatro é um lugar para se gritar a dor, a raiva, o ódio, para representar a violência que há em nós.

E agora um texto de Artaud:

"Van Gogh: o Suicidado Pela Sociedade
(trechos)
Pode-se falar da boa saúde mental de van Gogh, que em toda sua vida apenas assou uma das mãos e, fora disso, limitou-se a cortar a orelha esquerda numa ocasião.
Num mundo no qual diariamente comem vagina assada com molho verde ou sexo de recém-nascido flagelado e triturado, assim que sai do sexo materno.
E isso não é uma imagem, mas sim um fato abundante e quotidianamente repetido e praticado no mundo todo.
E assim é que a vida atual, por mais delirante que possa parecer esta afirmação, mantém a sua velha atmosfera de depravação, anarquia, desordem, delírio, perturbação, loucura crônica, inércia burguesa, anomalia psíquica (pois não é o homem, mas sim o mundo que se tornou anormal), proposital desonestidade e notória hipocrisia, absoluto desprezo por tudo que tem uma linhagem
e reivindicação de uma ordem inteiramente baseada no cumprimento de uma primitiva injustiça;
em suma, de crime organizado.
Isso vai mal porque a consciência enferma mostra o máximo interesse, nesse momento, em não recuperar-se da sua enfermidade.
Por isso, uma sociedade infecta inventou a psiquiatria, para defender-se das investigações feitas por algumas inteligências extraordinariamente lúcidas, cujas faculdades de adivinhação a incomodavam.
Gérard de Nerval não estava louco, mas  acusaram-no de estar louco para desacreditar certas revelações fundamentais que estava em vias de fazer; e, além de acusá-lo, certa noite golpearam sua cabeça, golpearam-no fisicamente para que esquecesse os fatos monstruosos que ia revelar e que, por causa deste golpe, passaram do plano mental para o plano supranatural, pois a sociedade toda, conjurada contra sua consciência, mostrou-se naquele momento suficientemente forte para obrigá-lo a esquecer sua verdade.
Não, van Gogh não estava louco, mas suas telas eram jorros de substância incendiária, bombas atômicas cujo ângulo de visão, ao contrário de toda a pintura com prestígio na sua época, teria sido capaz de perturbar seriamente o conformismo espectral da burguesia do Segundo Império e dos esbirros de Thiers, Gambetta, Félix Faure, assim como os de Napoleão III.

Pois a pintura de van Gogh ataca, não um determinado conformismo dos costumes, mas das instituições. E até a natureza exterior, com seus climas, suas marés e suas tormentas equinociais não pode mais manter a mesma gravitação depois da passagem de van Gogh pela Terra.
Tanto mais razão para, no plano social, as instituições se decomporem e a medicina parecer um hediondo e imprestável cadáver que declara louco a van Gogh.
Diante da lucidez activa de van Gogh, a psiquiatria nada mais é que um antro de gorilas obcecados e perseguidos que só dispõem de uma ridícula terminologia para aplacar os mais espantosos estados de angústia e asfixia humana, uma terminologia digna dos seus cérebros tarados.

Com efeito, não existe psiquiatra que não seja um erotômano declarado.
E não creio em exceções à regra da inveterada erotomania dos psiquiatras.
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E o que é um autêntico louco?
É um homem que preferiu ficar louco, no sentido socialmente aceite, em vez de trair uma determinada idéia superior de honra humana.

Assim, a sociedade mandou estrangular nos seus manicômios todos aqueles dos quais queria desembaraçar-se ou defender-se porque se recusavam a ser seus cúmplices em algumas imensas sujeiras.
Pois o louco é o homem que a sociedade não quer ouvir e que é impedido de enunciar certas verdades intoleráveis.
Nesse caso, a reclusão não é sua única arma e a conspiração dos homens tem outros meios para triunfar sobre as vontades que deseja esmagar.
Além dos feitiços menores dos bruxos de aldeia, há as grandes sessões de enfeitiçamento global das quais participa, periodicamente, a consciência em pânico.
Assim, por ocasião de uma guerra, de uma revolução, de um transtorno social ainda latente, a consciência coletiva é interrogada e questionada para emitir um julgamento.
Essa consciência também pode ser provocada e despertada por certos casos individuais particularmente flagrantes.
Assim foi que houve feitiços coletivos nos casos de Baudelaire, Edgar Poe, Gérard de Nerval, Nietzsche, Kierkegaard, Hölderlin, Coleridge e também no caso de van Gogh.
Podem ser feitos durante o dia, mas geralmente são realizados à noite.
Então, estranhas forças são despertadas e levadas à abóbada celeste; a essa espécie de cúpula sombria que, sobre a respiração da humanidade, constitui a venenosa hostilidade do espírito maligno da maioria das pessoas.
É assim que as poucas pessoas lúcidas e de boa vontade que se debatem sobre a terra já se viram, em certas horas da noite ou do dia, tragadas pela profundeza de autênticos pesadelos em vigília e rodeadas por uma poderosa sucção, pela poderosa opressão tentacular de uma espécie de magia cívica que logo será vista aparecendo nos costumes de modo mais manifesto.

Diante dessa sordidez unânime que de um lado se baseia no sexo e de outro na missa e. outros ritos psíquicos, não há delírio em passear à noite com um chapéu coroado por doze velas para pintar uma paisagem natural; pois como faria o pobre van Gogh para iluminar-se, como tão bem assinalou outro dia nosso amigo, o ator Roger Blin?
Quanto à mão assada, trata-se de heroísmo puro e simples; quanto à orelha cortada, pura lógica direta, e repito, um mundo que, cada vez mais, noite e dia, come o incomível para fazer sua maléfica vontade alcançar seus objetivos não tem outra alternativa nessa questão a não ser calar a boca.

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publicado por Folhasdeluar às 07:21





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